“Se vira nos trinta”, por Norma Alcântara

Aos vinte e poucos anos, já no final da faculdade, deixei um emprego como secretária e fui tentar carreira no Jornalismo.

Primeiramente, como foca, uma espécie de estagiário, já formado, tratado como aprendiz entre os profissionais experientes.

Fui, então, trabalhar na Rede L&C de Notícias – uma emissora que retransmitia sua programação para dezenas de rádios em todo o Brasil –, do empresário Luis Casali.

Trabalhava no que eles chamavam de o Primeiro Jornal Nacional de Rádio, comandado por Ney Gonçalves Dias e Flávio Menghine, muito famosos no meio jornalístico à época. Ney trabalhou com Marília Gabriela no programa TV Mulher, na Globo, e Menghine era uma voz – possante, maravilhosa – muito requisitada entre narradores de São Paulo.

Só havia ‘estrelas’ nas diferentes especialidades do Jornalismo no programa, como Aloysio Biondi, Juca Kfouri, Luis Gutemberg e Nivaldo Manzano.

Por vários meses, eu tremia quando chegava à rádio, só de pensar que, dali a pouco, estaria falando com aqueles jornalistas famosos e tendo que preparar as notícias que seriam colocadas antes de cada comentário. Menghine, também editor do Jornal, selecionava e editava o material.

Meu trabalho era escutar as notícias das demais rádios, garimpar no telex (equipamento de recepção e transmissão de notícias) e ler todos os principais jornais para ver o que importava acompanhar.  Daí, tinha que resumir as notícias mais relevantes em dez linhas para Menghine editar as aberturas dos comentários, orientar repórteres nas ruas, fazer entrevistas ao telefone e montar o roteiro do noticiário do dia. O jornal contava com inúmeros comentaristas de economia, política, esporte, agronegócio, etc.  

Era exaustivo para uma garota que mal sabia escrever notícias e nunca tinha pisado numa redação.

Fui fazendo conexão com os comentaristas e a equipe de reportagem.

Nos anos oitenta, o movimento em defesa do consumidor ganhava corpo e o jovem presidente da Paulistur (a secretaria de turismo do Governo Mario Covas), João Doria, como integrante do time de comentaristas, falava como especialista da nova área.

Eu ganhava o equivalente a um salário mínimo, que ia integralmente para o pagamento do aluguel de um apartamento na Bela Vista, que dividia com uma estudante. Precisava de outros trabalhos para me sustentar e, atrevida, ofereci ao jovem comentarista de Defesa do Consumidor os serviços de seleção de todas as notícias da área para facilitar a escolha dos melhores assuntos para suas análises cotidianas. Ele aceitou e eu iniciei minha série de bicos – produzidos em casa, fora do horário da rádio – no Jornalismo que me proporcionaram, além de recursos para me sustentar, experiência e uma rede de relacionamentos na área que seria crucial nos anos seguintes da minha carreira. Eram trabalhos obtidos por indicação dos comentaristas e repórteres da rádio.

Chegou um momento em que eu tinha cinco trabalhos simultâneos e dormia quatro a cinco horas por noite. O que aparecia eu topava: transcrever as entrevistas gravadas, redigir matérias para jornais de empresas, fazer clipping, cobertura de eventos, etc.

Compartilhei essas gostosas lembranças durante os intervalos do curso que estou fazendo em Santos, com profissionais e estudantes que relataram estar se ‘virando nos trinta’ para pagar suas despesas, como fiz há quarenta anos.

Para pagar a dispendiosa faculdade, um jovem estudante de Propaganda e Marketing mantém um comércio de óculos de sol na internet, faz anúncios digitais para donos de pequenas lojas de conhecidos da família e ainda vende equipamentos usados no Mercado Livre.

Alguém mencionou a amiga, professora universitária, que, além da atividade acadêmica, produz eventos e está desenvolvendo um aplicativo.

Outra pessoa citou uma professora de idiomas e de outras matérias, que também faz consultoria em design de interiores para complementar a renda.

Outro rapaz, de 36 anos, contou que trabalha como entregador do iFood, passeia diariamente com três cachorros e vende, nas empresas à tarde, salgados, preparados pela esposa. “E ela, além de produzir doces e salgados, ainda trabalha como atendente de loja”, acrescentou.

Um segurança de um empreendimento comercial comentou que, para garantir o sustento da família – tem dois filhos -, também acumula trabalho como entregador e faz viagens contratadas nos fins de semana. Um outro, com o mesmo propósito, além de emprego fixo como vendedor de bebida, adquiriu moto para trabalhar também como entregador e faz bico nos quiosques de água de coco aos finais de semana.

“Prefiro ter vários trabalhos a emprego fixo”, afirmou um deles, que se mantém apenas como free lancer”.

Pergunto a ele se essa variedade de trabalhos não é estressante e insegura, comparada a um emprego com salário garantido e carteira assinada. “Gosto da liberdade que essa vida corrida me dá. Escolho trabalhos e faço meus horários. É puxado, mas muito bom”.

Compreendo o comentário dele ao lembrar daquela época em que eu tinha tantos bicos e, apesar do cansaço, me divertia e era bem feliz com o resultado.

Um publicitário de 40 anos interrompeu a conversa e disse que isso não é só com a moçada começando e nem com pessoal mais velho complementando renda. “É um novo modo de garantir um dinheiro extra”, observou, relatando que deixou um emprego bem remunerado para desenvolver projetos para diferentes clientes. Fez por renda melhor, mas também pela liberdade.

Um enfermeiro, de 38 anos, contou então que, além de emprego fixo no hospital, criou uma pequena empresa de home care.

Já uma organizadora de festas, que também faz doces e bolos, trabalha como cuidadora para ampliar seus ganhos.

Observo a eles que meu filho e inúmeros amigos estão fazendo o mesmo: se ‘virando nos trinta’, fazendo vários trabalhos e conseguindo se manter e viver bem assim.

Minha amiga psicóloga Sônia Mara, que atende inúmeras pessoas nesta mesma situação, disse algo que resume esse novo cenário do mercado de trabalho pós-pandemia, mas que tem a ver também com o modo de vida desta geração do mundo digital:

– Hoje, o mercado é de trabalho, não de emprego. A moçada quer realizar o que precisa ser realizado. Muitos evitam vínculos longos com uma empresa, como fez nossa geração. Querem liberdade, autonomia.

Esses depoimentos me fizeram perceber que, minha circunstância de vida no início de carreira há mais de quatro décadas, com diversas fontes de trabalho e renda, parece estar se tornando um formato profissional regular na atualidade.