A “nova era” da ministra da Família e o limite da ação do governo nas decisões de pais para filhos, por Eduardo Marini
Qual é o limite da atuação de ministros e ministérios da família diante da exigência constitucional de respeito obrigatório aos direitos individuais e atribuições exclusivas de pais e líderes familiares?
A questão entrou em pauta com as declarações polêmicas, ou no mínimo animadas, da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora evangélica Damares Alves, 54 anos.
Sua Excelência, diria a simpática MC Ludmilla, chegou chegando.
Logo no dia da posse, “decretou” uma “nova era” no País: “Atenção, atenção, é uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”.
Dois dias depois, embalada, enquadrou como novo alvo, em entrevista à Globonews, o Sistema de Seleção Unificada do Ministério da Educação (Sisu), que permite ao estudante usar o Enem para conquistar vagas fora dos seus estados de origem.
Para ela, esse modelo flexível, tido como uma das principais conquistas recentes do Ensino Médio, “enfraquece os vínculos familiares”.
Nos termos da ministra: “o menino faz o Enem no Rio Grande do Sul e vai para o Amapá. É tirado do contexto. Às vezes tem apenas 16 anos. Será que não poderíamos pensar em políticas públicas para que esse menino fique um pouco mais próximo da família?”.
Primeiro, o azul do príncipe e o rosinha da princesa.
Ficar a favor ou contra, como opinião, é direito de qualquer numa democracia. O problema é que, ao “decretar” um padrão de comportamento para menores sob a responsabilidade constitucional de seus pais, a ministra, para além de quem se identifica ou não com seus valores morais e religiosos, ultrapassou o limite de ação do Estado e do poder público, mesmo o situado abaixo do guarda-chuva de um ministério da família, e invadiu o terreno que deve ser controlado exclusivamente pelos critérios dos líderes de famílias com seus filhos ou menores incluídos.
Tenho uma filha de 16 anos. As leis e o Estado de Direito garantem a mim e à mãe dela a atribuição, o dever e o direito exclusivos de estabelecer o que, como, de que forma e com quais simbolismos ela vai se vestir, desde que nossas decisões, evidentemente, não violem nem afrontem seus direitos legais, relações sociais e integridade psicológica.
No caso particular da nossa família, essas e outras questões foram sempre decididas em harmonia com nossa “pequena” – mas jamais abrimos e nem abriremos mão da exclusividade dessa atribuição.
Nunca demos nem daremos a qualquer outra pessoa, seja ela parente, avô, avó, padrinho, padre, madre, frei, bispo, pastor, monge, líder muçulmano, capitão, ateu, general, agnóstico ou ministro, o direito de interferir nessa e em qualquer outra decisão vinculada à sua criação sem que tenhamos solicitado alguma opinião, avaliação ou decisão.
E assim rezam as leis para qualquer outra família brasileira. Se algum pai ou mãe acha positivo aceitar as, digamos assim, sugestões da ministra, é decisão pessoal. Pode até caber discordar, mas nunca questionar o direito.
Mas estabelecer ou mesmo sugerir publicamente, real ou metaforicamente, na condição de ministra da Família, pasta inaugurada por ela, uma “nova era” para todos os menores em um quesito como esse revela clara interferência indevida em assuntos cujas decisões devem ser tomadas em caráter e abrangência exclusivamente familiares.
O episódio do Sisu, por sua vez, é o típico caso em que uma proposta aparentemente bem intencionada pode gerar muito mais problemas do que soluções pela falta de abordagem mais adequada e profunda da questão.
Em primeiro lugar, jovens vão se graduar em outros estados quase sempre por uma soma de motivos multifatoriais difíceis de serem alterados da noite para o dia, ou mesmo em um mandato, sem uma mudança radical nas estruturas educacionais do País e na condição financeira das famílias.
Atravessam fronteiras pela falta de vagas em universidades públicas e privadas do estado de origem, custo menor de vida e mensalidades em determinadas cidades e conveniência de moradia e sustento barato com amigos e parentes, apenas para citar os mais importantes.
Além disso, estudar em outro estado não significa, em grande parte desses casos, gastar mais ou ficar mais carente e distante da família. Antes, o contrário.
Para não ir muito longe, citarei meu próprio exemplo. Sou de Três Rios, interior do Estado do Rio, e estudei na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora é uma cidade mineira, como todos sabem, mas distante apenas 55 quilômetros da minha.
No meu período, todos os campi de universidades públicas do meu estado (não tínhamos recursos para pagar particulares) estavam na cidade ou na região metropolitana do Rio de Janeiro, distantes pelo menos 135 quilômetros de minha casa e com custos de vida bem maiores do que o encarado por mim na ótima e saudosa cidade da Zona da Mata mineira.
Em resumo: vivia em outro estado, mas estava muito mais perto de meus pais, e exigindo bem menos de suas finanças, do que se tivesse escolhido a capital fluminense. Apesar da fronteira, era um deslocamento regional – e a realidade mostra que isso ocorre em parcela muito grande desses casos.
Não bastasse, só um em cada dez alunos de federais estuda fora de seu estado natal. Em 2017, eram apenas 31 mil. Não chega a ser, convenhamos, um problema social – e muito menos “familiar”.
A ministra falou em “proporcionar políticas públicas de fortalecimento de vínculos sem a interferência do Estado”. Mas se alguma dessas “políticas públicas” gerar sequer uma única ferramenta que dificulte esse movimento cristalizado, a “interferência do Estado” estará, admitamos, configurada.
Sociedades ocidentais mais livres e compromissadas com o desenvolvimento procuraram, sobretudo no último século, reservar aos cidadãos e à sociedade a resolução das questões familiares, morais e religiosas, deixado para o Estado os temas relacionados a todos mas no todo: economia, segurança, saúde, questões fiscais, política educacional de formação, e por aí vai.
A partir dessa tendência, estruturas, mecanismos, conceitos, valores e convenções sociais foram estabelecidos, adotados e, mais do que nunca, solidificados. Soma-se a isso o fato de o Brasil ser uma das sociedades mais plurais do mundo, com origens, orientações sexuais, ideologias, posicionamentos políticos, culturas, padrões éticos e crenças (ou ausência opcional delas) diversos em convivência livre e democrática.
Ao se definir pela criação de um ministério da família diante de tanta diversidade, deve-se ter o cuidado sagrado (o sentido conotativo do termo é ironicamente proposital) de não tomar como pauta de toda a sociedade padrões morais, religiosos e comportamentais restritos a apenas parte dela.
Eis os pontos fundamentais.