A lição do mestre Blink, meu cachorrinho ainda bem vivo, por Norma Alcântara (*)

Blink chegou em um dia ensolarado, no colo da minha amada sobrinha em uma tentativa de me consolar pela perda, pouco tempo antes, de meu outro cachorrinho. Ele sempre foi uma benção, apesar de ser “malcriado”, muito entre aspas, porque, mesmo bem pequeno, atacou e mordiscou muitas pessoas, especialmente meu filho e meus sobrinhos, que costumavam brincar com exagero, às vezes correndo e apertando o pobre animal. Mas Blink sempre soube se divertir e se defender bem.

Quando passei quase um ano fora do Brasil, ele se resignou com minha ausência, fez companhia para minha irmã e desfrutava (e adorava) os passeios diários que ela proporcionava, mudando sua rotina de cão de apartamento sempre trancafiado.

Aos 9 anos, apresentou um probleminha no coração. Achei que ia perdê-lo. Que nada! Adaptou-se facilmente à medicação e, até hoje, toma remédio sem problema. Dou os comprimidos e não preciso juntar ao miolo de pão, como fazia com a Drika, que adotei para fazer companhia para ele – Drika já partiu e é outra história de amor especial.

Quando o Blink tinha 13 anos, o veterinário achou melhor fazer uma limpeza extensa na boca e extrações de dentes. Era bem arriscado, pois haveria necessidade de anestesia geral e ele tinha o problema de coração. Mas, se tudo desse certo – e o veterinário acreditava nisso –, nosso idoso, não tão velho assim, viveria vários anos mais. Preocupados, meu filho e eu fomos enfrentar essa situação. Foi uma manhã tensa e meu filho se emocionou muito quando Blink foi para a sala de cirurgia. E mais ainda quando ele saiu bem, com os dentes em ordem e pronto para mais uns anos em nossa companhia.

Um dia, quando ele tinha cerca de 14 ou 15 anos, eu voltava para casa mais cedo e vi, à distância, que ele estava deitado de barriga para cima, duro, sem se mexer. Apesar de esperar sua partida, meu coração apertou. Cheguei perto dele com lágrimas nos olhos, quando ele pulou, todo alegre, com minha chegada antecipada. O certo é que cenas como esta se repetiram várias vezes: quando ele brincava de estátua e muitas outras, quando realmente passou mal. Sempre achávamos que ele ia encerrar seu tempo conosco.

Depois disso, ele teve uma espécie de AVC, que afetou o movimento de sua pata traseira. Além disso, ele tem catarata e está limitado a ver sombras, está surdo e há muito tempo deixou de latir.

Em abril, ele ficou muito mal. Teve diarreia e febre. O novo veterinário – o antigo não foi encontrado naquele dia -, surpreso com a idade do Blink, de forma muito delicada, me avisou que entraria com antibióticos e outras medicações e que eu deveria, simplesmente, comemorar cada novo dia. Depois ele confessou que imaginava que o Blink morreria por causa disso em poucos dias. Afinal, estava muito magrinho e frágil como cão, velhinho, de 19 anos – segundo o médico, na contagem canina de anos de vida, comparativamente, Blink já é quase um  centenário. Mas, felizmente, os dias foram passando, o antibiótico fez seu trabalho e logo o ‘danado’ do Blink estava andando para lá e para cá, balançando o rabinho e tentando ‘namorar’ as cachorrinhas que minha vizinha, cuidadora de pets, traz aqui em casa para animá-lo.

Esse assanhamento dele e a amizade com a cuidadora merecem observação. O Blink é a prova viva que, enquanto há vida, a energia sexual está lá, firme e forte. Ele continua tentando com a cachorrinha da minha vizinha, que passou faz pouco tempo da infância para a adolescência e não cansa de ‘atacá-lo’. A cuidadora de pets se apaixonou pelo Blink e quer, a todo custo, levá-lo embora, com o argumento de que tem experiência com cães velhos, etc. Mas isso nunca vai acontecer. Esse ‘guerreiro’ não arreda pé daqui até chegar sua hora de ir para ao céu dos cachorros.

Mesmo com todo esse assanhamento, tenho certeza de que ele vai direto para o céu. E sei disso porque me dei conta de que ele se tornou um mestre. E agora chegamos à razão desse texto, que é o que ele tem me ensinado, especialmente nesse período.

Tivemos e temos muita esperança de que o Blink atravesse a pandemia ao nosso lado e ultrapasse os 20 anos, que ele completa em janeiro de 2021 – depois de ver a recuperação incrível do velhinho, o veterinário disse que isso não só é possível, mas que pode viver bem mais. Como sou do grupo de risco e tenho permanecido enfurnada em casa, passo todas as minhas horas com ele e venho acompanhando a capacidade do Blink de lidar com o envelhecimento. São comoventes a paciência, a resignação e a delicadeza com que atravessa esse inevitável processo de decrepitude física que atinge o corpo com a velhice. Dia após dia.

Ele perdeu os recursos físicos, mas utiliza o que vai sobrando com tal energia, que encanta. Sem reclamar. Ficou cego e essa é uma das mais difíceis circunstâncias a serem enfrentadas.  Mas, foi descobrindo e aprendendo os caminhos de casa a ponto de eu esquecer sua limitação. Agora, ele também está senil, então a dificuldade de locomoção ficou ainda pior, mas ele segue firme. Anda pelo corredor para entrar na sala e, quando percebe algo estranho, para e espera a memória voltar antes de retomar seu caminho. Muitas vezes, claro, nós o ajudamos. Mas, ele vive todas essas dificuldades como um monge: calmo, paciente, em silêncio e, acredite, como uma espécie de felicidade que foi revelando nessa etapa de sua vida.

E o Blink ama viver. Como eu, ele acorda feliz todos os dias bem cedo. Ele tem um quartinho com duas caminhas. Como não usa fraldas, sempre levanto à noite e o coloco no lugar sequinho. Pela manhã, dou banho e ele se deixa cuidar sem reclamar, apesar de nunca ter gostado de água no corpo. Em seguida sai, meio cambaleante, pela casa na sua caminhada matinal, depois de tomar o remédio em jejum, aguardando a primeira refeição – batata doce, que adora, ou uma fruta ou um leitinho. A alimentação é toda feita em casa – almoço e jantar à base de frango ou carne de vaca com legumes e carboidratos – o novo veterinário disse que não ia mudar nada da dieta. Não vamos mexer no que está dando certo, avisou, relembrando que algo está muito certo para um cãozinho com o coração problemático há anos estar vivendo tão bem, firme e forte. 

Com o Blink tenho refletido sobre a velhice como um processo inverso ao nascimento – em vez de crescimento, o declínio. É uma lenta volta ao mundo espiritual. Vamos perdendo os recursos físicos e mentais. Todos os dias, ele me dá essas lições de aceitação do processo natural da idade, da decrepitude do corpo, do lento encerramento dos ciclos. O mais impressionante é que isso acontece em paz, com calma e a paciência de um mestre. O meu mestre, o mestre Blink.

(*) Norma Alcântara é jornalista e vive em São Paulo.